sábado, 15 de agosto de 2020

Seu nome importa se você não for...

 

                Imagine que, por um infortúnio, você seja comedido de um câncer no cérebro. Você só irá desejar ser operado apenas por alguém que já tenha tido um câncer no cérebro e que se sinta exatamente como você, ou escolherá a pessoa mais qualificada do ramo e que possui altas taxas de sucesso em seu currículo mas não tem ideia absolutamente nenhuma do que você está passando?

                As chances de que você se identifique mais com a pessoa que passou pelo mesmo problema que você do que com o profissional eficiente é muito maior. Saber quantos são os momentos de dor, quantas as vezes a desistência do tratamento parecia ser a opção mais óbvia, e conviver com a incertezas trazidas pela saúde debilitada realmente têm potencial de gerar um elevado grau de empatia, pelo menos num primeiro momento.

                Compartilhar características em comum permite fazer generalizações e agrupamentos. Fazemos várias generalizações ao longo de um dia, afinal, endereçar as particularidades de cada pessoa sobre cada atributo possível pode ser uma tarefa deveras custosa. Não há problemas em, dependendo das circunstâncias envolvidas, colocar “etiquetas” nas pessoas. Mas não saber a essência, o limite tampouco as consequências dessas generalizações e correr o risco de usá-las em momentos impróprios é sim um problema um tanto relevante.

                Em termos um pouco mais rigorosos, generalizar e agrupar significa dizer que a variação das características dentre os indivíduos de um grupo é tão pequena, que ao conhecer um indivíduo da população, você consegue saber tudo o que há sobre qualquer outro daquela mesma população. Ao mesmo tempo, a variação de atributos entre um indivíduo de um grupo e outro indivíduo de outro grupo é tão grande que é possível admitir que, por pertencer grupos diferentes, esses dois são extremamente diferentes.

                Assim, agrupamentos e generalizações são ferramentas, formas de racionalizar a realidade complexa, precisamos usá-los com prudência. Diálogos com objetivo de estabelecer terreno comum, como decidir aonde passar as férias com a família, conhecer um novo colega de trabalho ou de faculdade, negociar um contrato com um cliente, são péssimas circunstâncias para incluir alguém no grupo de pessoas tão A ou B. Por outro lado, quando se pretende desenhar políticas públicas focadas, ou quando um desconhecido está vindo em sua direção numa rua escura e sinuosa, isto é, situações nas quais não é possível, por restrições de tempo ou pelo risco envolvido, individualizar as relações, o bom uso das ferramentas é muito bem vindo.

                Parece um trabalho um tanto ardiloso aprender a generalizar, e a verdade é que cabe a cada um julgar cuidadosamente, de acordo com seus objetivos e experiências, quando colocar as pessoas em cestas de atributos, afinal, como diz o velho ditado “quando se tem apenas martelo, tudo é prego”.

 

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

É só uma questão de dinheiro?

                Seu João trabalha como vendedor numa livraria de sua cidade. Exceto em dias de resfriado severo, é o primeiro a chegar à loja (antes mesmo da gerente). Ele se dedica bastante ao ofício e, ao longo dos anos, desenvolveu bastante habilidade em organizar livros, atender o público, rearranjar prateleiras e gerir estoque. Apesar dos grandes esforços de seus donos, a livraria se vê em dificuldades e acaba por fechar as portas. Assim, João e outros doze funcionários perdem o emprego e se veem em uma situação complicada. Para amenizar a terrível notícia, João e os demais acionam o seguro desemprego.

                Por um determinado período, João recebe uma quantia em dinheiro para que possa passar alguns meses à procurar de outra atividade que possa lhe servir de renda. Com tamanha experiência na livraria, ele monta seu currículo baseado no conjunto de habilidades que ele desenvolveu, adicionando alguns outros cursos que fez por conta própria, ele vai à luta.

                A história do seu João é bastante pertinente para algo que estamos vivendo atualmente, a pandemia Covid-19. Nela, podemos distinguir dois problemas que são confundidos de forma bastante corriqueira: o problema econômico e o problema financeiro. Obviamente ambos estão conectados, no entanto, é importante distinguir para que se possa fazer um diagnóstico mais preciso da situação.

                Ao perder o emprego, João, em princípio, perde a possibilidade de produzir serviços que seriam úteis a outras pessoas. As possíveis curas para esse problema são potencialmente duas: ou João se realoca no mercado de trabalho em outra atividade; ou ele procura um emprego igual ou similar ao que já fazia na empresa anterior[1].

                Outro problema é que as contas não param de chegar. João precisa quitar as contas de cartão de crédito, de luz, de água, gás, e muito mais. Em outras palavras, ele tem compromissos financeiros que precisam ser honrados para que ele não fique deficitário, mas com a perda do emprego, o auxílio é sua única fonte de renda. A cura para isso é uma só: ter mais dinheiro.

                Podemos perceber então que o auxílio empregado por diversos governos mundo afora ameniza o problema financeiro, e tenta, mas não resolve o problema econômico. Aquilo que João poderia produzir caso estivesse em algum emprego, ou resolvesse empreender, não é produzido, portanto, são coisas a menos no mercado. Ao não atender um cliente, este poderá ficar sem o livro que precisa e não exercerá sua atividade, ou não desfrutará de uma leitura de lazer, portanto, estará mais pobre em termos de bem estar[2].

                Talvez o exemplo de um serviços seja menos intuitiva, mas pense que isso vale também para menos peças de roupa, produtos de higiene, ou combustível para usos diversos. Logicamente os efeitos não são sentidos em todos os setores ao mesmo tempo, inclusive alguns podem até ganhar com isso, mas no geral, o mundo está mais pobre não apenas por ter menos dinheiro, mas por ter menos coisas para consumir[3].

                Voltando finalmente ao Covid-19, a postura geral em realizar o lockdown mundo afora traz benefícios mas também traz custos. O benefício seria a frenagem da propagação do vírus e o colapso dos sistemas de saúde, e os custos são econômicos.Mas como vimos, a ajuda financeira não resolve o problema econômico, pois produtos e serviços deixaram e deixarão de ser criados, transportados, e vendidos. Portanto, quanto mais tempo o fechamento durar, menor o efeito da ajuda financeira sobre o problema econômico.

[1] Na história, todos os seus esforços estão sendo utilizados na distribuição de currículos e esporádicas entrevistas de emprego, mas poderia muito bem ser o caso de ele tentar se aventurar num empreendimento.

[2] A discussão envolve outras questões adjacentes como o chamado Efeito Substituição, que podem afetar mudar os resultados, mas dado que é apenas um exemplo, vamos desconsiderar tais complicações.

[3] É preciso ter em mente que consumo na abordagem econômica é um termo amplo, e pode ser utilizado em diversos contextos, até mesmo, como por exemplo, consumir tempo livre com a família, ou tempo para um hobby.