domingo, 20 de setembro de 2020

Diferenças, sim. Mas diferenças à parte...

    É gol! Roberto Firmino aproveita o contra ataque fulminante para marcar o gol da vitória do Liverpool contra o Flamengo no Mundial de Clubes de 2019. Após o apito final, um torcedor dos Reds, que estava ao meu lado durante a partida e bastante empolgado com os lances do jogo, disse “You have a very good team! It was a very close match. Congratulations!”. Nos cumprimentamos e tornamos a conversar sobre alguns aspectos da partida. Mesmo após a cerimônia de premiação, o clima entre adversários foi marcado por tranquilidade, respeito, e admiração mútua.

    Do outro lado do espectro, a segunda partida da final da taça Libertadores da América de 2018 entre os times argentinos Boca Juniors e River Plate foi marcado por uma lamentável briga entre torcidas que obrigou as autoridades a realizarem o jogo longe de terras sul-americanas. Os ferimentos no braço e no olho de Pablo Pérez após um chuva de pedras e gás de pimenta lançada por torcedores do River Plate ao ônibus da delegação do Boca Juniors demonstram a incapacidade de coexistência entre os grupos de torcedores acerca de um simples evento esportivo (para eles, com certeza não tão simples).

    Dadas as circunstâncias bastante similares, os resultados finais tão diferentes das inter-relações entre os grupos advém de duas ideias chave: tribalismo e polarização.

    Antes, uma tribo é um conjunto de indivíduos que se conectam a partir de algo que eles consideram significativo, podendo ser religião, etnia, nacionalidade, idioma, laços afetivos, e várias outras coisas, até mesmo time de futebol. Seguindo essa ideia, tribalismo é o conjunto de padrões e atitudes que tendemos a adotar quando estamos envolvidos numa tribo.

      O pensamento tribal afeta a forma com que fazemos julgamentos normativos sobre determinado tópico, criando e cultivando a noção de “nós contra eles” (falando bonito, é a nossa psicologia moral). Discursos implícitos ou explícitos muito comuns são: nós estamos certos, eles errados; nós conhecemos a verdade, eles não; nós podemos falar sobre dado assunto, eles não. Além disso, o tribalismo afeta também a maneira através da qual adquirimos conhecimento e a maneira através da qual consideramos quais tipos de conhecimentos são válidos ou não (nossa psicologia epistemológica, em termos mais sofisticados). Assim, temos maior predisposição em rejeitar o conhecimento originário de outras tribos, e aceitar, sem muito questionamento, os conhecimentos que advêm da nossa tribo.

       O outro termo importante, a polarização, é uma medida do quanto ou o quão forte são as diferenças entre grupos, sejam elas reais ou percebidas. Cabe ressaltar que dependendo do quanto uma pessoa se identifica com o grupo ao qual pertence, as diferenças percebidas são tão relevantes quanto as reais. Podemos dizer que quanto maior a polarização, maiores serão as diferenças entre grupos, e menores serão as possibilidades de acordo.

       Aplicando nossos conceitos chave aos exemplos futebolísticos, podemos então observar que tribalismo em si não é o problema, mas passa a ser quando existe um alto grau de polarização. A relação entre flamenguistas e ingleses é caracterizada como tribal de polarização baixa, enquanto que entre os argentinos a relação tribal de polarização é próxima à máxima. Essas características possibilitaram tanto um duelo amistoso entre torcidas, quanto encontros que beiravam a barbárie.

       Perceba que a polarização pode fazer com que membros de uma mesma tribo segundo algum critério (nacionalidade), tenham conflitos bastante intensos por serem de tribos diferentes em outro aspecto (times de futebol). Brasileiros e ingleses que possuem nacionalidades diferentes, falam idiomas diferentes, e têm costumes diferentes podem conseguiram dialogar, conviver e coexistir, enquanto os argentinos que têm muito mais em comum entre si, exceto pela preferência esportiva, se confrontaram ao ponto de destruírem o que ambos almejavam: assistir ao jogo.

sábado, 12 de setembro de 2020

Jogarão como vencedores, agirão como vencedores e serão vencedores

               Logo na entrada, os frequentadores são recepcionados por um detector de metais e seus pertences passam por revistas similares ao que se é realizado em aeroportos, além de presença constante de seguranças aparentemente armados. Normalmente, isso descreveria perfeitamente a entrada de uma prisão ou de alguma embaixada americana, onde a segurança precisa ser levada ao grau mais alto possível. No entanto, esse cenário ocorre em Richmond, colégio de ensino médio do filme Coach Carter.

                Na trama, Ken Carter, um ex-estudante e ex-jogador do time de basquete da escola retorna como treinador para tentar elevá-lo a outro patamar. Mas Carter tem a difícil missão de treinar um grupo de jovens inquietos e aparentemente bastante indispostos a seguir qualquer regra estabelecida. Assim, o coach Carter utiliza suas melhores armas para realizar o trabalho da melhor forma possível.

                A primeira delas consiste num contrato no qual se comprometem a manter uma nota mínima, vestir paletó e gravata durante aulas e dia de jogos, assistir à todas as aula e sentar na primeira cadeira durante as aulas. A premissa básica é a de deixar clara as regras de interação entre o grupo, de forma a incentivar comportamentos virtuosos por parte dos garotos. A ideia de que “se os rapazes não conseguirem cumprir um simples contrato do time de basquete, quanto tempo levará para quebrar a lei?” é então implantada.

                Segundo, coach Carter é simplesmente implacável e irredutível com comportamentos que violem quaisquer das regras usadas por ele para dirigir o time. Caso algum dos atletas descumprisse as regras do contrato ou alguma regra implícita definida por ele, o primeiro seria submetido a punições em forma de carga adicional de exercícios tanto para o time todo, quanto para o infrator. Em um caso extremo, como grande parte do time não havia cumprido o contrato assinado, ele opta por suspender o time inteiro por certo período. Cabe também mencionar que em dado momento, Carter pune seu filho por um atraso acidental, mostrando que não haveria tratamenta privilegiado a nenhum membro da equipe, e que todos seriam tratados como iguais.

                Outro fato interessante é o de que Carter não é uma pessoa qualquer. Como ele mesmo diz, suas credenciais estão estampadas na parede do ginásio como reconhecimento de seu mérito como atleta. Carter também conseguiu uma bolsa de estudos para uma boa universidade, fato raro dentre os egressos de Richmond. Ele sabia usar a força quando necessário, e sabia argumentar e defender seus princípios, sendo então exemplo de que quando o líder mostra virtude , menor a necessidade de força e coerção para fazer valerem as regras do jogo perante os liderados.

                Agora realizando a usual aplicação à ciência econômica, a história descrita suscita a importância das instituições. Resumidamente, instituições são as regras explícitas (geralmente expressas em forma de leis e normas), implícitas (costumes e cultura) e a capacidade de fazer valer tais regras (enforcement). Em outras palavras, instituições como as regras do jogo. No momento em que Carter adentrou o ginásio para treinar o time, ele estabeleceu o conjunto de regras através dos quais os jovens deveriam seguir para se tornarem elegíveis para jogar, gerando um ciclo virtuoso de hábitos e costumes que disciplina, trabalho árduo e respeito.

                O filme ilustra como os mesmos indivíduos, no caso, os jogadores, submetidos a instituições forte podem apresentar resultados completamente diferentes. A criação e o cultivo de incentivos que valorizem as virtudes aqui descritas tendem a gerar resultados melhores do que instituições fracas e que moldam negativamente as relações entre os indivíduos (tal como eram as regras antes de Carter assumir o time). É importante frisar que implantar tais instituições virtuosas não aconteceu de imediato, tampouco sem atritos, mas que ao fim, ensinaram os jovens a jogarem como vencedores, agirem como vencedores e se tornarem vencedores.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Quanto custa alimentar o espírito?

              “Além de cortar o cabelo, ou fazer a barba, você pode também contratar o serviço de massagem. É como um serviço adicional qualquer, e muito relaxante“ me foi dito certa vez acerca dos habilidosos barbeiros/massagistas indianos, que além ajudarem a melhorar o aspecto do corpo, dizem também alimentar o espírito ao oferecer massagens ao seus clientes.

                Esse serviço pode ser contratado em diversas barbearias das cidades indianas, mas não é incomum encontrar uma tenda à beira da calçada na qual os serviços são oferecidos por barbeiros igualmente habilidosos. Fumaça, barulho constante, nenhuma proteção contra possíveis colisões de veículos, poeira levantada pelos veículos, nenhum banheiro próximo, nada impede que moradores e turistas de frequentarem tais lugares. Aparentemente, tais serviços não estão apenas disponíveis na Índia. Até onde sei, a Turquia tem uma tradição parecida, então é mais uma opção para quem deseja experimentar.

                O fato de existirem barbeiros massageadores parece interessante o suficiente, no entanto, a coisa fica ainda melhor. O preço, tanto pelo pacote completo de corte e massagem, tende a ser cerca de menos de um dólar. Logicamente o preço varia de acordo com a taxa de câmbio e outros fatores, mas é uma aproximação razoável.

                Interessante também que, comparando habilidades por habilidades, os barbeiros indianos dificilmente perderiam para, por exemplo, um barbeiro americano que cobra muito mais de um dólar por seu serviços (que em geral, não incluem massagem). Provavelmente os barbeiros indianos adorariam cobrar muitos dólares de seus compatriotas, ou de ir para os EUA e ofertarem suas habilidades pelos mesmos preços dos americanos, mas obviamente não é esta a realidade para a maioria esmagadora.

                Serviços que dependem fisicamente do prestador (non-tradables em economês) não podem ser livremente movidos de um lado a outro como, por exemplo, uma nova versão do Iphone (tradables). Assim, o preço dos serviços tendem a divergir entre os países, enquanto que o preço dos produtos exportáveis, não muito (descontados frete e impostos, este que pode distorcer bastante os preços). Se o preço de um produto diverge de um lugar para outro de forma persistente ao longo do tempo, seria muito vantajoso para as pessoas comprarem no local mais barato e vender no lugar mais caro. Lucro sem risco!

                Sabemos que, na prática, os preços divergem de lugar para lugar, mas os serviços tendem a divergir mais do que produtos em termos percentuais. Em países mais pobres como a Índia, os níveis salariais tendem a ser menores que nos EUA, o que impede os barbeiros massagistas de cobrarem preços americanos à seus compatriotas. Então, aparentemente, caso vá para a Índia num futuro próximo, é possível que alimente o espírito por cerca de um dólar.