segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Isso é um absurdo!

             “Os ricos deste país precisam dar sua contribuição, pagar mais impostos, doar para caridade. Nós da classe média precisamos lutar contra esses exploradores que passam o dia em seus iates e ficam viajando pra Paris em cada feriado prolongado. É preciso que o governo crie políticas pra evitar que essas pessoas enriqueçam tanto. É um absurdo!”.

            As palavras foram ditas por uma pessoa que conta com salários mensais de quinze mil reais. O fato é que essa pessoa ocupa o percentil noventa e nove do Brasil em termos salariais, isto é, num português direto: ele é mais rico do que noventa e nove por cento da população brasileira. Para se ter uma ideia, o percentil cinquenta é de aproximadamente mil reais, isto é, uma pessoa que recebe aproximadamente mil reais de salário é tão ou mais rico que metade da população, e tão ou mais pobre que a outra metade. Para deixar a ideia um pouco mais observável na prática, em termos de probabilidade, se você mora em um apartamento em uma metrópole ou capital do país, olhe para o porteiro do seu prédio, ele é classe média, você não.

            Apesar de todos termos o direito à indignação, e de que não seja nada saudável invalidar o sentimento das pessoas, um pouco de conhecimento dos fatos não faria mal à saúde. Por um lado, a indignação nos ajuda a identificar, de maneira intuitiva, possíveis irregularidades na maneira de condução da sociedade. Em cada momento que vemos pessoas habitando as ruas, dormindo ao relento, sem amparo e sem esperança, o sentimento vem à tona toda e isso pode motivar ações que contribuam com a vida de outras pessoas. Portanto, não há problema em agir baseado na indignação na esfera pessoal em momentos específicos, mas quando tratamos de políticas públicas, a indignação não pode ser a única, tampouco a principal ferramenta na tomada de decisão.

           Por ser carregado de conteúdo emocional, o puro senso de indignação aplicado à política pública possui sérias ressalvas, e muitas as vezes, os efeitos negativos podem persistir por gerações.

             O primeiro problema trata-se dos vieses cognitivos, que são padrões sistemáticos de julgamento que ferem a lógica e a racionalidade. Um grande exemplo de viés é o de que tendemos a prestar muito mais a atenção em coisas que comprovam nosso ponto de vista do que em evidências do contrário, mesmo quanto estas últimas são muito mais abundantes (o chamado viés de confirmação). No exemplo da fala do nosso camarada, o viés impede que ele perceba que ele faz parte do grupo que ele mesmo atacou tão enfaticamente.

             Outra questão se refere ao fato de que, no ato de indignação geralmente temos um rosto bem definido (seja o nosso próprio, o de parentes próximos ou da pessoa que habita as ruas), e quando isso ocorre, ao propor uma solução não estamos enxergando as preferências daqueles sem um rosto. Como exemplo, temos a famosa greve dos caminhoneiros de 2018 que assolou o país. No caso, as lideranças do movimento estavam sempre em evidência na mídia mostrando todas as suas dificuldades e exigências, mas em contrapartida, aqueles que pagariam a conta (os demais brasileiros como um todo) não tinham um rosto para comover e mobilizar as ações em seu favor, e assim se tornaram muito mais facilmente manobráveis em carregar o fardo.

              Além desses problemas graves o suficiente, a indignação aumenta o risco de você inflar seu ego, ou seja, de se considerar moralmente superior àqueles que “não enxergam os problemas mais graves da sociedade, que eu, ser hábil e perspicaz estou vendo com meus próprios olhos neste momento“. Uma vez que raramente a indignação resulta na busca da total compreensão objetiva da situação, esse é um caso clássico de sobreposição das preferências individuais sobre as das demais pessoas, num verdadeiro show de “eu não gosto disso, portanto ninguém deveria fazer, logo, o governo deveria aprovar uma lei contra”.

              Pois bem. Conhecendo os limites da nossa indignação, o que fazer? Infelizmente os remédios são tão amargos quanto necessários. No âmbito da produção de fatos, a melhor resposta para esses problemas é a tal da ciência, que, como toda criação humana é imperfeita por definição, mas ainda assim boa o suficiente para oferecer boas decisões em um mundo tão complexo. No campo da moral e da ética o consenso é muito mais improvável, pois seja através da filosofia, da religião ou dos costumes, estamos no campo em que as subjetividades individuais imperam, e talvez seja essencial um pouco de todas as três.

          Como ressalva, lembre-se que não é preciso se tornar um robô insensível às questões permeiam a existência humana, mas vale compreender que usar apenas o senso de indignação no momento de desenhar uma política pública não é a melhor saída, e com certeza, isso é um absurdo.

domingo, 11 de outubro de 2020

Lar, doce lar

               “Sweet home Alabama, where the skies are so blue...”, “I’m going home, to the place where I belong”, “I’m lucky, I know. But I want to go home”, “Mama, I’m coming home”, “Leaving home ain’t easy”.

                A colcha de retalhos de trechos de canções do parágrafo anterior se refere a algo mais que presente no cotidiano de muitos: simplesmente: a casa. Normalmente atribuímos o status de casa a locais físicos, um local geográfico que serve de ponto de referência para onde podemos retornar todos os dias. No entanto, já se perguntou o por que de se ter uma casa? Afinal, o que é uma casa? O que ela representa, além de uma estrutura de madeira e concreto?

                Talvez o conceito de casa ao que me refiro esteja mais próximo à ideia de lar, aonde as pessoas se sentem acolhidas, protegidas e cuidadas (ou cuidando). Em outras palavras, o objeto se torna fonte sensações essenciais para a manutenção da sanidade. De um modo mais específico, para além de espaço físico, a ideia de casa está intimamente relacionada ao conflito permanente entre caos e ordem.

                Caos é o que se encontra fora de casa, é o desconhecido, o imprevisível e muitas vezes o indomável, mas ao mesmo tempo é potencial. Enquanto o caos amedronta e paralisa certas pessoas, outras simplesmente cultivam um vício por ele. A ordem é o que está dentro de casa, e é o extado oposto do caos.

                Num olhar apressado, a velha dicotomia entre considerar ordem como sendo algo bom e caos como sendo algo ruim pode ser uma ideia pra lá de atrativa, mas cuidado. A ordem pode funcionar como uma armadilha, afinal é lugar muito confortável para se estar. O mundo fora de casa é dinâmico, portanto, trancafiar-se dentro dela por tempos e tempos pode te incapacitar a lidar com o caos que governa as ruas. E mais, estar dentro dela não significa que o caos não chegue até você. Além disso, lidar com o caos pode ser uma fonte importante de crescimento e de desenvolvimento de potenciais escondidos nas entranhas do ser.

                Assim, a questão essencial passa a ser em como determinar o equilíbrio entre ordem e caos em nossas vidas. Quando chega o final do expediente e vamos para casa para descansar, esperamos nos recuperar de todas as inúmeras incertezas do mundo exterior, para que possamos nos expor ao caos novamente no dia seguinte minimizando o risco de destruição física e mental.

                No entanto, antes de saber alocá-los, é preciso saber reconhecer ordem e caos e então diferenciá-los. Esta capacidade é construída quando arrumamos a cama, a lavamos a louça ou consertamos o encanamento, aprendemos não apenas a identificar as diferenças entre caos e ordem, mas também à produzir ordem a partir do caos, mas também quando um tranquilo passeio de domingo se torna uma briga generalizada entre os familiares. Então percebemos que a ordem é suscetível à irrupção pelo caos, e o caos pode ser tomado pela ordem.

                Mas e se a casa é uma bagunça? Bagunça em um sentido mais amplo do que coisas espalhadas pelo chão. O que acontece quando um lugar que seria um santuário da ordem, na verdade é marcado por um caos torturante? É a sensação de se ter uma casa (objeto) mas não se sentir em casa. Nessa situação, sem um local no qual possamos nos recuperar da superexposição do caos do dia a dia, e sem um lugar em que possamos aprender a transformar o coas em ordem, grandes são as chances de que nos tornemos niilistas e sem esperança.

                Portanto, manter a casa arrumada física e emocionalmente é mais que um mero exercício de benevolência, trata-se de uma ferramenta que nos permite navegar pelo mundo sem que o peso da existência seja grande demais para carregar.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Aluno para sempre

            Imagine frequentar um lugar no qual você pode, com uma mensalidade bastante acessível, fazer curso de vários instrumentos musicais, inclusive canto. Sim, é tipo uma Smartfit da música, na qual você gira a roleta e pode escolher qualquer curso de música oferecido pela escola. “Revolucionária”, “única”, “extraordinária”, entre outros, são adjetivos comumente exclamados por aqueles que ouvem a proposta pela primeira vez.

           Sabemos muito bem que não basta ter uma grande ideia, sua execução também precisa ser grandiosa. No caso da Musiflex (seu nome), posso afirmar como aluno, que a execução foi tão grandiosa quanto a ideia. Jamais faltavam esforços para que todos os estudantes tivessem todo o suporte necessário. Importante ressaltar, a escola é dirigida por uma família de sonhadores que queriam, como o próprio slogan dizia, “democratizar o ensino da música”.

            Imagine também você frequentar um lugar onde, apesar de ser moldado como uma escola tradicional, você conta com todo o amparo necessário para para que seu aprendizado seja maximizado, seja ele técnico, material ou emocional. Ao adentrar a BSB Musical você poderia sempre esperar ser recebido de braços abertos por funcionários, professores e outros alunos. Além disso, poderia esperar o que havia de mais moderno em termos de plataformas digitais, diversas modalidades de matrícula, muita presteza e disposição.

             Musiflex e BSB Musical contavam com um auditório realmente invejável e salas de ensaio para que os alunos pudessem interagir e aplicar os conhecimentos aprendidos. Além disso, ambas tinham algo que era incomum e em comum: o ambiente não se parecia em nada com o de uma escola ordinária, mas sim como uma extensão daquela família de sonhadores. Nelas, se o seu nome é João, para eles você era o João, a pessoa, e nunca apenas mais um aluno pagador de mensalidades. Estar num ambiente como esse possibilitava conhecer pessoas que cursavam os mesmos ou outros instrumentos, tornando a aprendizagem mais orgânica, quase como morar num país para aprender um idioma.

            No entanto, com muito pesar, neste dia 2 de outubro de 2020 as histórias de mais de trinta anos da BSB Musical e 5 anos de Musiflex chegaram ao fim.

           Como é bem sabido de todos, os tempos de pandemia são implacáveis e já fizeram várias vítimas, tanto vidas com em vidas. Assim, apenas os melhor adaptados sobrevivem. No caso, ambas as escolas não mediram esforços para se adaptarem ao novo contexto: houveram vários descontos e promoções, foram experimentadas não uma mas várias formas de realização de aulas virtuais e o máximo de cuidado ao retornarem com as aulas presenciais. No entanto, o aumento da inadimplência e a queda de frequentadores devido à crise vitimaram ambas.

             De forma bastante implacável, empreendedores precisam aprender a viver num ambiente de constante adaptação à riscos e incertezas. Principalmente num lugar aonde o padrão ouro é a garantia, tranquilidade, a estabilidade do setor público, tais pessoas merecem todos os aplausos por enfrentarem o desconhecido.

           Embora realmente possam haver por aí empresários “do mal” ou seja lá o adjetivo que queira empregar (estes, em geral são os rent seekers, em economês), antes de simplesmente bombardearmos as pessoas que dedicam o máximo de suas vidas à manter um negocio, é preciso reconhecer aqueles que trabalham para oferecer os melhores produtos e serviços, encarando essa difícil tarefa. Não é sobre dinheiro, é sobre lutar a cada dia para manter um sonho vivo e ao mesmo tempo possibilitar o sonho de outros. Por isso, a mentalidade antiempresarial indiscriminada, fruto da perpetuação de uma ideia ultrapassada, irrealista e preconceituosa, nos impede de avançar como povo e nação. Caso continuemos cultivando tal mentalidade, a pobreza no país realmente terá um passado brilhante e um futuro promissor.

         Se por um lado, este é um texto que eu jamais gostaria de ter escrito por ser relacionado à tamanha perda, por outro, não poderia deixar de prestar esta singela homenagem e tentar fazer com que a longa trajetória e a triste retirada desses empresários do bem jamais seja em vão. As escolas podem ter deixado de existir fisicamente, mas elas sempre viverão na memória daqueles que tiveram o prazer e a honra de fazer parte daquela família.

           Foram muitos eventos, estudos, momentos... à todos os funcionários, professores, e aos donos, o meu muito obrigado não apenas pelos serviços, que podem ser parcialmente substituídos, mas também pela história de vida que vocês proporcionaram à mim e à milhares de outros estudantes ao longo dos anos, e isso sim é insubstituível. Até sempre.