“Os ricos deste país precisam dar sua contribuição, pagar mais impostos, doar para caridade. Nós da classe média precisamos lutar contra esses exploradores que passam o dia em seus iates e ficam viajando pra Paris em cada feriado prolongado. É preciso que o governo crie políticas pra evitar que essas pessoas enriqueçam tanto. É um absurdo!”.
As
palavras foram ditas por uma pessoa que conta com salários mensais de quinze
mil reais. O fato é que essa pessoa ocupa o percentil noventa e nove do Brasil em
termos salariais, isto é, num português direto: ele é mais rico do que noventa
e nove por cento da população brasileira. Para se ter uma ideia, o percentil
cinquenta é de aproximadamente mil reais, isto é, uma pessoa que recebe aproximadamente
mil reais de salário é tão ou mais rico que metade da população, e tão ou mais
pobre que a outra metade. Para deixar a ideia um pouco mais observável na
prática, em termos de probabilidade, se você mora em um apartamento em uma
metrópole ou capital do país, olhe para o porteiro do seu prédio, ele é classe
média, você não.
Apesar
de todos termos o direito à indignação, e de que não seja nada saudável
invalidar o sentimento das pessoas, um pouco de conhecimento dos fatos não faria
mal à saúde. Por um lado, a indignação nos ajuda a identificar, de maneira
intuitiva, possíveis irregularidades na maneira de condução da sociedade. Em
cada momento que vemos pessoas habitando as ruas, dormindo ao relento, sem
amparo e sem esperança, o sentimento vem à tona toda e isso pode motivar ações
que contribuam com a vida de outras pessoas. Portanto, não há problema em agir baseado
na indignação na esfera pessoal em momentos específicos, mas quando tratamos de
políticas públicas, a indignação não pode ser a única, tampouco a principal ferramenta
na tomada de decisão.
Por
ser carregado de conteúdo emocional, o puro senso de indignação aplicado à
política pública possui sérias ressalvas, e muitas as vezes, os efeitos negativos
podem persistir por gerações.
O
primeiro problema trata-se dos vieses cognitivos, que são padrões sistemáticos
de julgamento que ferem a lógica e a racionalidade. Um grande exemplo de viés é
o de que tendemos a prestar muito mais a atenção em coisas que comprovam nosso
ponto de vista do que em evidências do contrário, mesmo quanto estas últimas
são muito mais abundantes (o chamado viés de confirmação). No exemplo da fala
do nosso camarada, o viés impede que ele perceba que ele faz parte do grupo que
ele mesmo atacou tão enfaticamente.
Outra
questão se refere ao fato de que, no ato de indignação geralmente temos um
rosto bem definido (seja o nosso próprio, o de parentes próximos ou da pessoa
que habita as ruas), e quando isso ocorre, ao propor uma solução não estamos
enxergando as preferências daqueles sem um rosto. Como exemplo, temos a famosa
greve dos caminhoneiros de 2018 que assolou o país. No caso, as lideranças do
movimento estavam sempre em evidência na mídia mostrando todas as suas dificuldades
e exigências, mas em contrapartida, aqueles que pagariam a conta (os demais
brasileiros como um todo) não tinham um rosto para comover e mobilizar as ações
em seu favor, e assim se tornaram muito mais facilmente manobráveis em carregar
o fardo.
Além
desses problemas graves o suficiente, a indignação aumenta o risco de você
inflar seu ego, ou seja, de se considerar moralmente superior àqueles que “não
enxergam os problemas mais graves da sociedade, que eu, ser hábil e perspicaz
estou vendo com meus próprios olhos neste momento“. Uma vez que raramente a
indignação resulta na busca da total compreensão objetiva da situação, esse é
um caso clássico de sobreposição das preferências individuais sobre as das
demais pessoas, num verdadeiro show de “eu não gosto disso, portanto ninguém
deveria fazer, logo, o governo deveria aprovar uma lei contra”.
Pois
bem. Conhecendo os limites da nossa indignação, o que fazer? Infelizmente os
remédios são tão amargos quanto necessários. No âmbito da produção de fatos, a
melhor resposta para esses problemas é a tal da ciência, que, como toda criação
humana é imperfeita por definição, mas ainda assim boa o suficiente para
oferecer boas decisões em um mundo tão complexo. No campo da moral e da ética o
consenso é muito mais improvável, pois seja através da filosofia, da religião ou
dos costumes, estamos no campo em que as subjetividades individuais imperam, e
talvez seja essencial um pouco de todas as três.
Como
ressalva, lembre-se que não é preciso se tornar um robô insensível às questões
permeiam a existência humana, mas vale compreender que usar apenas o senso de
indignação no momento de desenhar uma política pública não é a melhor saída, e
com certeza, isso é um absurdo.
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